segunda-feira, 24 de outubro de 2011

uma aventura em Castro Verde

Uma aventura em Castro Verde
fábula autocaravanista





Em plena batalha de Ourique vimos nascer Portugal

Receosos porque os tempos não estavam para grandes performances, situação agravada pelo facto de termos de andar sempre à procura da bomba onde mais barato nos vendessem gasóleo, do que poderia resultar abastecermos a nossa nave do tempo com um carburante pouco afoito a uma vertiginosa viagem através dos séculos, decidi-mos ainda assim arriscar. Atestada a berlinga apontámos ao Alentejo com a expectativa de retrocedermos pelo menos um século em cada hora de viagem e chegarmos a tempo de ver nascer Portugal.
O nosso primeiro rei nasceu, viveu, reinou, morreu e foi sepultado em Coimbra e por via da sua maneira de ver o mundo a partir deste cantinho da Europa, nunca se deixou estar parado tempo suficiente para que o supusessem parado, do que resultou que ainda hoje haja quem ponha em causa onde terá nascido, vivido, reinado e morrido, ou mesmo se terá nascido, vivido, reinado ou morrido.
Então, a nossa aventura vale mesmo a pena. Vamos acelerar mais de oito séculos e meio para trás, de forma a ficamos cara a cara com ele, numa das façanhas que melhor o podem identificar, seja porque se dele até se põem em causa aspectos fundamentais da sua existência, desta façanha se começa por se pôr em causa onde foi cometida para depois se duvidar mesmo se existiu.
Vamos directos à batalha de Ourique.
Regulada a máquina do tempo para andar para trás conforme os nossos cálculos, uma hora passada um século a menos, donde resultaria que, se tudo estiver certo, estaremos no campo de batalha no ano da graça de 1139, a data mais provável em que a refrega terá ocorrido, embora o rigor dos historiadores seja tão instável que o risco de pisarmos o risco seja, para simples mirones como nós, tão grande como o de entrarmos pelo reino da asneira, o que só arriscamos pelo supremo saber de preferir o risco à castração.
Não devemos ter errado por muito pois, quando chegámos ao sítio que hoje é conhecido por São Pedro das Cabeças e à época para que a infernal máquina do tempo nos levou era tão só Fossado, deparámos com uma confusão indescritível, dum lado tropa farta vestida de branco onde até havia, imaginem só, mulheres guerreiras a cavalo, amazonas em exército árabe pode lá ser, esfregámos os olhos e pareceu-nos não haver dúvidas, então e se confusão é de tal ordem, e do outro lado com ar façanhudo estão os lusitanos em muito menos quantidade mas batalhando com a nossa ancestral habilidade para resolver as coisas difíceis e falhar nas mais fáceis, era inevitável que iríamos vencer a batalha.
Desta confusão não viemos muito esclarecidos.
Mas temos de respeitar o resultado. Cinco a zero é uma goleada de tal ordem que nem dá direito a segunda mão. As cabeças da linha avançada do adversário lá ficam pelo chão e um dia alguém dirá que tal vitória, conseguida com tamanha desproporção de forças só pode ter sido obra de milagre de São Tiago, e por isso o lugar passará a ser chamado de São Pedro.
Por tudo quanto já foi dito, esta não era a nossa aventura. Acordámos, voltámos aos dias de hoje e rodámos meia dúzia de quilómetros em redor até que demos com uma vila simpática, Castro Verde, onde para o parque de campismo estava anunciado o décimo quinto encontro de autocaravanas pyc-mmvv, isso sim uma verdadeira aventura.
Aí vamos nós.



O Parque Municipal de Campismo de Castro Verde

Chegados ao camping, situado na ponta noroeste do burgo, levámos com a seca do costume em terras lusas. De facto lá estava, atrás de um balcão, aquilo que nos pareceu ser uma das moçárabes que Afonso Henriques levou no séquito e que São Teotónio mandou restituir à liberdade, mas que a nossa secular tradição de sermos muito lentos a fazer justiça terá mantido esta moura convertida em pena suspensa, agravada nos dias de hoje com a suprema forma de tortura que é a de ter de aguentar oito horas seguidas atrás do balcão de um parque de campismo a fingir-se ocupada, mesmo sabendo que em menos de dez minutos por dia dava conta do recado. E não é que faltassem tarefas bem mais úteis, por exemplo averiguar quem comeu a paella que a esposa andaluza do galego Eduardo tinha preparado para degustação do colectivo, ou decifrar o estranho caso do desaparecimento de um galheteiro do azeite!
Feito check-in, acantonámos. O parque não é plano mas disfarça, não é relvado mas vá lá vá lá, não tem sombras mas para lá caminha. Porque vínhamos da guerra, a primeira intenção foi irmos directos ao duche e aí verificámos que só para abrirmos a torneira levávamos com a descarga do chuveiro. Claro que o canalizador que fez tal obra deve-se ter apercebido da asneira, pois acabada esta parte do trabalho retirou sem sequer te instalado suporte para sabonete.
Registámos e nem sequer refilámos, pois o calor humano com que fomos recebidos, saneou toda a contestação. Mais tarde haveríamos de constatar, para concluir o rol das críticas, que a iluminação nocturna é excessiva.
Finalmente registámos a presença de equipamento adornado com bandeiras de cruz azul sobre fundo branco, igualzinhas às que o primeiro rei hasteou na batalha de Ourique, mas que hoje por estranha coincidência identificam um povo eslavo com raízes russo-suecas, os suomis da Finlândia.
De seguida fomos consultar o programa e logo houve uma coisa em que jurámos não alinhar, uma qualquer investida sobre o moinho de vento, pois para confusões históricas já estávamos aviados, além de que a berlinga não é nenhum Rocinante.
Julgávamo-nos livres de mais envolvimentos com a História, com todo o tempo para o lazer. Nem sabíamos quanto estávamos enganados.



O coração do campo branco


Castro Verde será terra pequena, mas tem um circuito turístico urbano de fazer inveja a terras maiores e recheadas de monumentos. Com a vantagem de nem sequer precisarmos de transporte motorizado para o cumprir.
Ponto obrigatório para início do circuito, a Basílica Real, decorada com painéis de azulejos que procuram retratar a tal batalha onde tivemos a ilusão de ter estado no dia anterior. A basílica é real em homenagem a D. Sebastião que por aqui passou, cinco anos antes de, numa incursão a Álcacer Quibir, se ter dado para guerrear até aos limites da insensatez, indo ao ponto de ficar sozinho a espadeirar rodeado de dezenas de descendentes dos outros que o nosso primeiro rei derrotara em Ourique. Por vontade do Desejado a batalha ainda hoje não teria acabado, mas os mouros é que não estiveram pelos ajustes e um deles, de um golpe separou a cabeça do jovem rei de um corpo que, ao que dizem, estaria há muito roído de doenças. E assim acabou a dinastia de Avis.
Pelas crónicas que ficaram, a tal viagem de D. Sebastião, quase dois meses pelo Algarve e Alentejo, onde só não teve recepção entusiástica em Entradas e Castro Verde. O cronista Cascão, um Fernão Lopes de segunda extracção diz mesmo que só nestas terras não houve apresentação de "ordenanças a pé".
Mas o que é isso face ao simbolismo que sobre ele exercia o tal lugar, então chamado de Cabeços, e que hoje é São Pedro embora pudesse ser Santiago! O jovem rei deve ter pensado que se o objecto da sua devoção era aquela batalha e se São Tiago iria acabar patrono de Entradas, se o seu bisavô D. Manuel I deu foral a estas terras enquanto ele em tudo procurava ter com exemplo o tio-bisavô D. João II, o melhor era acabar com as confusões. E dizem, mandou pôr a matriz na Senhora dos Remédios, provavelmente com a secreta esperança de que, pouco mais de um século depois fosse erigida, quase ao lado, a basílica onde podem ser apreciados aqueles magníficos azulejos.
Para os interessados por arte sacra, é ainda obrigatória a visita guiada ao seu magnifico Tesouro, o que nós não perdemos.
Da basílica seguimos para o Museu da Lucerna, onde se encontra a que dizem ser a maior colecção de candeias de azeite do que foi o império romano. Só um estranho conjunto de circunstâncias terá permitido que muitas destas peças de frágil barro permaneçam intactas, quase dois mil anos depois de saírem das mãos dos oleiros. E são largas centenas.
Esgotado o programa da tarde, a noite reservou-nos mais uma agradável surpresa, um espectáculo de dança contemporânea, onde os profissionais da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo excederam a melhor das nossas expectativas. A peça tinha um fundo musical com os fados da nossa saudosa diva e, houvesse o cuidado de se ter preparado um libreto, estávamos perante uma quase sub-ópera.
Fantástico, e são horas de ir dormir.




Uma janela sobre a planície

Na manhã seguinte, mais uma surpresa extra-programa, a vila estava ocupada por uma feira de velharias, artesanato e gastronomia regional, um aperitivo de excelência para uma tarde numa "janela sobre a planície".
Este programa iniciou-se no Monte das Oliveiras, dominante sobre uma planície, onde não há cem anos más políticas pensaram ter o celeiro de Portugal, esta pátria de vinhas à beira-mar plantadas imaginada auto-suficiente em cereais e, descoberto o erro, outras políticas igualmente más pararam a produção intensiva duma forma que poderia ter levado as terras … a não produzir nada. Salvou-as o engenho destas gentes, que vai disfarçando um mal pior. O monte é o mais acabado exemplo da estrutura rural transtagana.
Do que alcança do alto, dá para imaginar a sul a terra revolvida por toupeiras humanas, na freguesia da Santa Bárbara de Padrões, entre as aldeias de A-dos-Neves e A-do-Corvo, tão só a mais importante actividade económica do Portugal de hoje em volume de exportações. Afinal, é da terra que nos vem tudo.
Finda a visita ao monte arrancámos para a ermida de Nossa Senhora de Aracélis, quase um enclave castro-verdense em terras de Mértola e de onde se alcançam terras de Espanha. Depois, sempre com a planície a cheirar a um Abril maduro, campos fora até Casével onde nos esperava a Associação de Cante Vozes das Terras Brancas, desta vez sem o elenco masculino, mas não se perdeu nada, nem sequer faltou, a pedido do nosso comandante, o "passarinho das quatro da madrugada".



Tudo na vida tem um fim


Caminhamos para o fim da aventura, pouco mais resta que gastronomia e paleio.
O jantar de "gala", as "generalidades e culatras", o almoço partilhado, o regresso às origens e o compromisso de, para o ano e para muitos mais regressarmos à aventura. E assim vamos, também nós, fazendo história.
Depois de abandonarmos o camping, ainda demos uma última espreitada à tal igreja, da Senhora dos Remédios, também chamada das Chagas do Salvador e aí pareceu-nos ver a explicação para D. Sebastião nada ter feito por ela, se calhar adivinhou que vinha a seguir um Filipe que a reconstruiria.
D. Sebastião deixou escola para os políticos de hoje, que não sabendo resolver os nossos problemas, ficaram à espera que viesse o FMI tomar conta disto.
Até que um dia o povo aplique ao FMI o remédio para os filipes. Janela fora.

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