sábado, 25 de outubro de 2008

Código do Trabalho

Tranquilino Maia

A HISTÓRIA FANTÁSTICA DE
5 GARRAFÕES DE AZEITE

fábula sindical

os encontros e desencontros do Manel com o Xico Azeiteiro, o João mixordeiro e o Zé regedor


Silva de Baixo é uma aldeia pitoresca. Um casario cientificamente desalinhado, que começa um pouco adiante do grande supermercado. Daí que também é referenciada por ser a terra mais a ocidente do continente.
Como em todas as aldeias, há lá um Zé, um Xico, um Manel e um João. O Xico negoceia em azeites, o Manel é um simples trabalhador, o Zé em tempos fez plantas para casas e é por isso que lhe chamam "inginheiro", e o João é um cromo de que ninguém conhece ofício certo, mas que à boca fechada se diz que faz uma de mixordeiro. Em relação a este último, e para não dar mau nome à terra é mais conhecido como o João da Casa Amarela, tal é a cor da vivenda onde mora, embora nem mesmo esta se saiba se é sua, tantas as hipotecas que sobre ela recaem. Más línguas até chegam a dizer que a casa não passa dum canil, onde o João faz de cão grande. Invejas!
Dos hábitos dum contrato que já vinha do tempo dos avós do Xico e do Manel, mal acabada a safra nos lagares, logo o Manel comprava 5 garrafões de azeite ao Xico. Era portanto coisa que se cumpria como uma obrigação antiga, e o seu cumprimento era questão de honra entre aqueles dois que, pelo menos para este efeito podemos chamar de "parceiros". Pese embora o facto de o Manel até nem ir muito à bola com o Xico, que não só pelo ofício era um azeiteiro na verdadeira acepção da palavra, e o Xico não alinhava com o Manel, ao que ele dizia por interesses de classe. Para que não restem duvidas, sempre devemos dizer que o Xico era por todas as redondezas reconhecido como o chefe do grémio dos azeiteiros e o Manel figura predominante na sua classe profissional.
E o contrato lá se ia cumprindo. Janeiro chegado, que é como quem diz no início de cada ano, o Manel comprava o azeite ao Xico, renovando o contrato que vinha lá de trás, com a única diferença que era a de que em cada ano terem de acertar os valores do negócio, atentas as evoluções do mercado, ou como se diz, da inflação. E nisto a discussão era grossa, cada um puxando a brasa à sua sardinha.
Estavam na memória anos em que o negócio não se ficava rigorosamente pelos 5 garrafões, seja porque o Manel não precisava de tantos e o Xico tinha outros interessados, ou até porque o Manel precisasse de mais e houvesse sobejo, ou até porque desse jeito ao Xico que a coisa fosse de outra forma, e nestes casos os dois lá se punham de acordo. Doutras vezes, quer um quer outro tentaram alterar o quinhão mas, porque não havia acordo a coisa tinha de ficar pelo combinado.
Ultimamente o João, cuja fama lhe vinha do facto de até conseguir fazer vendas abaixo do preço de custo, e que se gabava de nunca perder com o negócio, sendo mesmo capaz de vender o que não era seu, vinha tentando meter-se no acordo antigo entre o Xico e o Manel. Com pouco sucesso, pois lá na terra quem a ele tinha recorrido, acabava na maior parte das vezes por gastar no médico e na botica mais do que poupava com os preços baixos do João e até havia que se transferisse para o cemitério depois de consumir as suas mixórdias. Havia ainda a suspeita de que o João só negociava com o Xico, sempre duma forma que parecia ruinosa para os interesses que ele dizia representar, porque tinha um medo que se pelava da ASAE e por tal precisava de ter na montra artigo aprovado. Enquanto garantia, com o apoio do regedor, que os inspectores nunca lhe fossem ao armazém.
Quanto ao resto, nada de anormal. A não ser uma certa suspeita que o Manel e os seus amigos vinham alimentando e que a cada momento mais crescia.
Passo a explicar-me. Na terra do Manel e do Xico, a tal aldeia de Silvas de Baixo, havia como em todo o lado, o tal regedor. Cargo que de há tempos até era de eleição directa mas, vá lá saber-se por que artes, vinha sempre a calhar a amigos do Xico e companheiros da mesa de sueca do João. Para cúmulo, o dito regedor em vez de tratar do que devia, que era o de arranjar caminhos e levadas, manter a escola e o posto clínico a funcionar, garantir as pensões dos velhos e dos doentes, pagar e obrigar a trabalhar a guarda e deixar a justiça funcionar, se andava a meter também nos negócios da freguesia, entre eles o do azeite, usando a sua autoridade sempre para o mesmo lado.
O que fazia o povo desconfiar e resultava em constantes protestos.
O ocupante desse cargo de regedor, mudava com frequência, e pelas tais desconfianças, até era raro que chegasse a durar os quatro anos para que fora eleito. Actualmente está lá o tal "inginheiro", o Zé, que não está a fazer melhor do que os que o antecederam, mas joga com a grande vantagem de ter laços de sangue com as duas mais importantes famílias de Silva de Baixo, seja a que agora nomeia o regedor, seja a que anteriormente o fazia.
Claro que o negócio dos 5 garrafões de azeite, que o Manel todos os anos comprava ao Xico, porque resultava de prática ancestral, nem se discutia. Ainda que, como vimos, por vezes o Manel achasse que 5 garrafões eram de mais ou de menos, tendo em conta as necessidades da sua família, e o Xico nuns anos tentasse impingir-lhe mais porque o negócio estava fraco. Ou cortar-lhe a ração porque tinha, por outras bandas, procura a preços mais vantajosos, ou até ofertas desonestas do João, que teimava em meter-se num negócio que não era seu.
E quando assim era, o regedor Zé e os outros que lá estiveram como regedores antes do Zé, apareciam sempre a defender os interesses do Xico, sem que alguma vez tivessem grande sucesso, porque contratos são contratos, e para mais quando eram contratos com tantos anos de existência que já se perdia a conta aos anos que vigoravam. E o Manel tinha muitos amigos e sabia defender-se.
Uma vez o Zé, já que o Xico esperto como era deixava para ele estas partes difíceis, até levou o caso à justiça e foi até ao supremo, o que não deveria ter feito pois as suas funções exigem imparcialidade. E veio de lá tão mal que nem vos digo, pois o juiz amandou-lhe com uma pena de sobrevigência só comparável a prisão perpétua!
Mas nem assim o Xico e o Zé ganharam juízo.
Pensaram, pensaram, e lá lhes saiu mais uma ideia. Arranjaram lá na terra meia dúzia de analfabetos, daqueles que nem com novas oportunidades lá vão a não ser para a estatística, nomearam-nos comissão, alcunharam-nos com uma sigla CLBRL, e deram-lhes um livro em branco para que nele expusessem todas as ideias válidas que lhes viessem á mente. Analfabetos que eram, nada de válido foram capazes de escrever no tal livro, que então de livro em branco, passou a ser conhecido por "livro branco".
O regedor Zé, mal recebeu o livro de volta, nem o abriu. Também não precisava, pois bem sabia que vinha da tal CLBRL tal como para lá o tinha enviado. Entendeu pois que o contrato dos 5 garrafões de azeite estava sujeito a sobrevigência e caducidade entre 18 meses e 10 anos. Como não era dado a contas e para ele tudo isto era muito confuso, chamou o Xico. E porque nenhum deles tinha cabeça para precisar com rigor há quantos anos vigorava o tal contrato dos 5 garrafões de azeite, reconheceram humildemente que era há muito tempo, e assim sendo devia acabar de imediato, tanto mais que isso servia os interesses do Xico. O Zé deu-lhe uma palmada nas costas e proferiu umas palavras de conforto, que teve por ainda mais convincentes que o "porreiro pá" com que recentemente tinha despachado um outro grande amigo. Palavras que expressavam com toda a sinceridade a máxima popular "os amigos são para as ocasiões".
E pensaram que era assunto arrumado.
Só não contaram com a reacção do Manel. O qual, porque era com esses 5 garrafões de azeite e com outros contratos do mesmo tipo que abastecia toda a sua família, juntou o colectivo dos parentes, vizinhos e amigos e vai de irem todos para Lisboa protestar.
Nem vos digo no que aquilo deu, que isso fica para outra história.

Tranquilino Maia
(contemplando o mundo em Maio de 2008
A literatura de cordel até pode deixar a cultura pendurada. Mas, nunca corrompida.
publicado por edições cá sete em Junho de 2008 -500 exemplares